Na sequência da publicação no website do Jornal Expresso de 26/05/2020 de uma «Carta aberta sobre a integridade patrimonial dos Painéis de S. Vicente de Fora», onde a actividade dos profissionais da Conservação e Restauro é tratada de forma pouco lisonjeira e numa óptica lamentavelmente redutora, a ARP – Associação Profissional dos Conservadores-Restauradores de Portugal – reconhece que tal carta manifesta por parte dos signatários, uma visão errónea e desprovida de conhecimento do que significa, na actualidade, exercer a Conservação e Restauro.
O espaço público é dado frequentemente a opiniões infundadas e pouco esclarecidas sobre a actividade da conservação e restauro do património cultural, dificultando o reconhecimento público do conservador-restaurador. Como exemplo disso, são as descrições habituais que enquadram estes profissionais como artistas ou artesãos ou profissionais da “restauração”, como surge aliás referido na carta em questão – este termo, apenas de forma anacrónica descreve a actividade, pois foi substituído gradualmente pela palavra “restauro”, de influência italiana e divulgado a partir dos anos 60-70 em Portugal por profissionais do mesmo instituto que a carta refere (porque há toda uma história da profissão em Portugal antes de Luciano Freire e, sobretudo, entre José de Figueiredo e a actualidade).
O Conservador-restaurador é o profissional habilitado para o exercício da Conservação e Restauro, com 5 anos de formação superior. Reúne no seu conhecimento científico, humanístico, artístico e técnico a capacidade de conhecer o bem cultural de forma ontológica, e intervém à luz de uma deontologia própria assente no contributo multidisciplinar, que o capacita para um maior conhecimento do bem cultural que, de forma natural, lhe impõe reflexões e limites.
Assim, é falacioso dizer que “o ethos atual da restauração [sic] de pinturas antigas a óleo autoriza os restauradores a repintarem o quadro baseando-se em princípios que excluem o respeito pela obra a restaurar”! É igualmente incompreensível a afirmação que “hoje o ethos dos restauradores de óleos antigos (que são simultaneamente historiadores de arte e diretores de museu) permite-lhes instruir os seus competentes técnicos para repintarem (e lavarem) em vez de restaurarem” – como se a profissão não fosse determinada vitalmente por uma ética de salvaguarda de todos os valores associados a cada bem cultural. Isto é afirmado, sem a noção que a linguagem técnica tem importância. As palavras e os conceitos são importantes e a “lavagem” e a “repintura” de que falam é simplesmente inconcebível à luz da disciplina moderna da Conservação e Restauro.
Por questões de dificuldade de percepção da semântica disciplinar, os Conservadores-restauradores são ainda vistos como gente de pincel na mão, cedendo a pedidos “à la carte” com receitas e alquimias secretas que põem o património a brilhar. Não…! São profissionais habilitados, autónomos na forma como encaram a intervenção, dialogantes com todo o contributo multidisciplinar, conscientes de que o restauro é sobretudo “uma acção mental” e não apenas um conjunto de operações técnicas.
São igualmente cidadãos interessados na conservação do nosso património cultural… todos os dias, em museus, em laboratórios, em ateliers, em andaimes, e trabalham diariamente por esse objectivo, de espírito determinado, pesem as inúmeras dificuldades laborais e salariais. Os Conservadores-restauradores sofrem actualmente por indefinições e condicionantes legislatórias, equívocos das autoridades públicas e particulares responsáveis, disrupções no exercício de fiscalização das entidades competentes no cumprimento da legalidade e, no geral, a falta de sensibilidade das instituições públicas, do Estado Central às autarquias locais.
A partir de 1989, a disciplina autonomizou-se em Portugal com a criação da Escola Superior de Conservação e Restauro e a formação dos primeiros conservadores-restauradores no ensino politécnico e universitário nos anos 90. As competências para o acesso à profissão estão nacional e internacionalmente estabelecidas num corpo legislativo e normativo que define a profissão e que manifesta de modo evidente quem pode executar procedimentos de conservação e restauro. Existem dezenas de associações profissionais europeias reunidas na E.C.C.O (European Confederation of Conservator-Restorers´ Organisations), à qual a ARP pertence, que regulamenta a profissão e estabelece os padrões da sua actuação (através de um código de ética e orientações para o exercício da actividade). Existe uma rede europeia de ensino superior da Conservação e Restauro (ENCoRE – European Network for Conservation-Restoration Education) que desenvolve a formação para a atribuição do perfil de competências (em Portugal, são três as instituições de ensino superior que leccionam Conservação e Restauro e todas pertencem a este organismo).
No enquadramento legislativo nacional, embora o perfil do conservador-restaurador e suas competências não se encontrem definidos na Lei de Bases do Património Cultural Português (e que urge clarificar), é reconhecido no Decreto-Lei n.º 140/2009, de 15 de Junho (que estabelece o regime jurídico dos estudos, projectos, relatórios, obras ou intervenções sobre bens culturais classificados, ou em vias de classificação), a existência deste, atribuindo-lhe a responsabilidade de direcção de obras ou intervenções em património classificado.
É assim incompreensível que se desacredite as competências dos Conservadores-restauradores que integram a equipa multidisciplinar que intervém nos painéis de S. Vicente, o seu profissionalismo e autonomia, com uma visão tão pouco hodierna da profissão.
A Direcção da ARP