Os utilizadores mais atentos nas redes sociais serão amanhã (sábado), e tal como tem acontecido nos últimos anos, informados da celebração do Dia Internacional do Conservador-restaurador, sendo publicadas através daquelas, diversas expressões de celebração da data. No entanto, uma parte significativa da sociedade civil, dos conservadores-restauradores e do universo profissional e institucional do Património Cultural desconhece o contexto em que o dia 27 de janeiro é celebrado, obviamente divulgado com o intuito de um maior (mas não necessariamente melhor) reconhecimento e defesa da profissão.
Na verdade, a desinformação relativamente a esta efeméride (e porque é disso que se trata, celebrando-se o dia de nascimento de Viollet-le-Duc) tem sido prolongada ao longo dos últimos anos, potenciada pela força dos números de utilizadores das redes sociais, permitindo também a sua internacionalização quando, de facto, não se trata de uma celebração reconhecida e legitimada internacionalmente. O alcance das redes sociais permitiu a divulgação lenta, mas cada vez mais distribuída desta data como o momento de celebração da profissão, inicialmente apenas por alguns conservadores-restauradores e, atualmente, por um universo maior e que já inclui mesmo algumas instituições culturais, universidades e até municípios e alguma comunicação social. Não lhe retirando a dimensão positiva válida, não deixa de ser uma celebração dúbia na génese, implementação, e também no efeito.
O “Dia Internacional do Conservador-restaurador” foi estabelecido no XVIII Congresso International de Conservación y Restauración de Bienes Culturales, realizado entre os dias 9 e 11 de Novembro de 2011 em Granada, um evento organizado pela Universidade de Granada, e que apesar do aspecto internacionalizante, não reuniu em 2011, pelo menos de forma pública, nenhuma instituição ou organismo verdadeiramente representativo ao nível internacional que permita a declaração e universalização de uma data oficial para a celebração da profissão de conservador-restaurador. A informação pública existente sobre a génese da criação da celebração é inexistente, não sendo sequer possível ler a declaração que a cria e perceber quem a subscreveu. Há uma arbitrariedade tácita que emana deste processo, incluindo a escolha da data. Muitos organismos poderiam participar e contribuir para uma declaração internacional de estabelecimento de uma data de celebração da profissão (por ex. UNESCO, ICOM, ICOMOS, ICCROM), até mesmo de forma unilateral, mas no Congresso de Granada criou-se um equívoco.
De facto, embora a data não seja legitimada por nenhum organismo internacional no sector do Património Cultural, o facto de ter sido proclamado esse carácter universal da celebração deu sentido a uma configuração celebratória que não existia, a de um dia internacional assinalando e laureando a profissão e, nomeadamente, o próprio título profissional, o de “conservador-restaurador”.
A partir da declaração estabelecida em Granada, a data foi então estimulada através das redes sociais, dispersando-se primeiro em Espanha e Portugal, e mais recentemente, no contexto ibero-americano, não sendo, até ao momento, assinalada noutras partes do globo. Na Europa, desde 2018, a profissão é celebrada de forma verdadeiramente representativa através dos Dias Europeus da Conservação e Restauro (em outubro), instituídos pela E.C.C.O. (European Confederation of Conservator-Restorers´) e divulgados através das associações profissionais nacionais constituintes, nomeadamente a ARP. Uma celebração internacional, com legitimidade institucional, criada para fomentar a comunicação sobre a profissão no contexto europeu e as linhas de orientação comuns nessa realidade para o reconhecimento da profissão e da sua importância …ainda assim, obviamente, sem um carácter universal, sendo europeu o contexto.
Seria importante esse universalismo da celebração de um “Dia Internacional do Conservador-restaurador”, tendo em conta a importância do acto globalizante de identificação e elevação da profissão.
A meta-legitimação do dia 27 de janeiro como “Dia do Conservador-restaurador” através da sua divulgação pelos profissionais nas redes sociais é inovadora, mas a forma espontânea e positiva com que o assinalamento da profissão tem sido estimulado nessa data deixa perceber, simultaneamente, a falta de uma lógica mais abrangente e agregadora que fomente reflexões, debates e interacções, e uma comunicação mais estruturada entre profissionais, universidades, organismos do Património Cultural e sociedade civil sobre a figura do Conservador-restaurador e os desafios da profissão.
Por outro lado, e com a excepção dos que estiveram presentes na Conferência de Granada, os profissionais desconhecem os debates, argumentos e justificações que levaram a instituir o dia do nascimento de Viollet-le-Duc como a data para a celebração do Conservador-restaurador. Não procuramos demonizar o arquiteto, cuja acção teórica e prática deve ser contextualizada, mas não nos parece ser a figura mais venerável para quem pratica a Conservação e Restauro na atualidade. Se é Viollet-le-Duc, já não diremos Ruskin para não exacerbar a aporia, mas porque não Vitet ou Merimée? Ou Boito? Riegl? Giovannoni? Ou até saindo do âmbito do restauro arquitetónico, porque não Edwards, Kiewert, Poleró y Toledo ou Secco-Suardo? Parece-nos que, na análise da evolução histórica dos conceitos e critérios ligados à conservação e restauro para a selecção de uma personalidade de charneira nesse âmbito, muito é discutível. Mas talvez seja Cesare Brandi a figura mais consensual, considerando a sua importância na inauguração de uma estruturação teórica, metodológica e disciplinar, de âmbito internacional e não apenas nacional ou regional, e que é ainda uma referência maior nos dias de hoje. Brandi morreu a 19 de janeiro. Será que ainda vamos a tempo de adiantar a celebração do “Dia Internacional do Conservador-restaurador” cerca de uma semana para se ajustar à efeméride?
Uma maior e determinada reflexão sobre uma data dedicada à profissão é necessária no seio dos organismos internacionais, de forma a haver debate público orientado sobre a mesma, congregando toda a comunidade profissional nesta celebração de forma representativa, esclarecida, consciente e crítica, e com propósitos estruturados e interventivos. Quiçá, com essa acção, poderemos mesmo todos celebrar a profissão. Em Janeiro? Porque não…